sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Constatações e a vontade de tirar a fruta verde

Ser feminista neste mundo é quase um paradoxo.
Para quem não acha, é estereótipo.
Estou cansada de combater este câncer dos rótulos. Não há o que diga, não há o que faça, lá vem o meio milhão de senso comum.

Ser mulher neste mundo é quase um paradigma.
Para quem não acha, é feminismo.
Estou forte e animada para combater este câncer dos rótulos. Por mais que se diga, por mais que se oprima, lá vem o meio milhão que querem transformar esta realidade.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A implosão de "As eruditas"

A crítica ao pedantismo é indicustivelmente qualificada.
Uma casa tão bem construída que técnicos diriam ser à prova de terremotos, vendavais, furacões e maremotos sem passar por um arrãozinho na maçaneta. Um terreno seguro, digno das obras de Molière, e, por ser uma delas, faz jus à sua fama.
Diálogos bem construídos, ironia articulada, tradução de Millôr impecável, ou seja, passaria incólume de falhas na construção por qualquer meia dúzia de intelectuais com algum neurônio funcionando.
No entanto, sob uma perspectiva feminista -- que não é mais nem menos do que qualquer outro campo de crítica -- a obra apresenta rachaduras imperdoáveis.
A criação do estereótipo das eruditas pedantes se, por um lado, traça um cenário risível das bizarrices acadêmicas; por outro, reforça a imagem do feminino na sociedade: incapacidade e/ou inconsistência para elevação do espírito.

Trata-se de três mulheres deslumbradas com a filosofia: mãe (Filomena), filha (Armanda) e cunhada (Belisa). As três lideradas pelo homem detentor da sabedoria (Tremembó) que, mais pra frente, será desmascarado como charlatão. O livro deixa claro e enfatiza a incapacidade das mulheres em notar que Tremembó não passa de um picareta verborrágico.
O enredo gira em torno do impasse do casamento de Henriqueta (filha "não-filósofa" de Filomena e também irmã de Armanda) apaixonada por Cristóvão, porém prometida ao sabichão Tremembó pela mãe.
A abertura do livro é sintomática: Armanda questiona a irmã, Henriqueta, sobre a razão e a institucionalidade do casamento. O que parece ser progressivo num primeiro momento, logo depois descamba. Armanda, ao longo da história, demonstra que ainda nutre algo por Cristóvão, gosta de esnobá-lo e fantasia que ele ainda a corteja.
Todos os discursos pró elevação da consciência feminina, sob qualquer ângulo, começam a ser desmontados e, consequentemente, desqualificados. Tanto de Filomena, quanto de Armanda e Belisa.
Como já disse, o combate ao pedantismo é ótimo. No entanto, o preço é caro. A reafirmação da ideologia do lugar da mulher na sociedade que, primeiramente, parece fazer parte da sátira; no fim, acaba sendo a moral da história.
Os desfechos começam a se dar quando os homens articulam uma farsa para desmascarar Tremembó e mostrar às filósofas a verdade. Ou seja, tanto para um lado quanto para o outro, as mulheres necessitaram efetivamente da presença masculina para mostrar-lhes o caminho da verdade. Não há independência de espírito em nenhuma delas. Pelo contrário: é como se, sem eles, elas se pusessem a bater cabeça incessantemente.
E, por fim, Henriqueta, aquela que almeja apenas um casamento, um filho, um marido e uma vida água-de-batata, tem um final feliz.
Crisaldo, que durante todo o livro foi "dominado" pelas posições de Filomena, acaba dando o veredito final.
Este é o dono desta fala:
"(A Belisa) Falo mais a você, minha adorada irmãzinha. Fica toda irritada com o menor solecismo sem reparar que o seu comportamento é todo um barbarismo.
Essa quantidade de livros em que vive mergulhada é uma montanha de lixo que não vale nada.
Isto é: com exceção daquele Plutarco com capa de lona que eu uso pra calçar o banco da poltrona.
Você devia queimar toda essa porcaria, toda essa falsidade
e deixar a ciência com os sábios de verdade.
Quebrar ou botar fora a luneta imensa que está lá no sótão e as outras bugigangas com que vê não sei o quê.
Esquecer um pouco o que se faz na lua
e preocupar-se mais com a arrumação da casa, obrigação sua.
Não é nada direito que uma mulher estude mil coisas irreais
e descuide, na prática, das coisas mais banais.
Orientar os filhos no caminho da vida, dirigir e comandar a criadagem, manter a casa limpa e arejada, gastar o dinheiro com economia, taí uma filosofia.
Nossos pais, nesse ponto, sabiam o que diziam quando afirmavam que uma mulher já não é nada tola se distingue uma réstia de alhos de uma de cebolas, um par de calças de um par de ceroulas.
As mulheres antigas não liam,
mas viviam,
consideravam cuidar do lar um ato de cultura
e, em vez de aprender a besteira da literatura,
que a imaginação só entulha,
manejavam o dedal, a linha e a agulha[...]"

As três mulheres que poderiam ser progressivas, em alguma instância (à exceção do esnobismo acadêmico), são desmoralizadas. E, Martina, a cozinheira, dá a moral da história:

"Se eu tinha um marido, eu acho
que eu queria ele bem macho.
Alguém prefere mole o marido?
Em qualquer sentido?
E se eu agisse mal
eu acho que ele devia me sentar o pau.
O meu marido.
Em qualquer sentido."

O resultado dos ingredientes subjetivos encrustrados nesta obra que, obviamente, fazem parte do contexto mais geral de construção do coletivo, as mulheres sentem na carne, nas vísceras e no poço sem fundo da alma.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

A Casa Tombou Loucamente I

Não é possível!
A casa realmente virou de ponta cabeça e ninguém, absolutamente ninguém, viu. Ou então todos grudaram o pé no telhado, tiveram sobrecarga de sangue no cérebro e entraram em delírios entusiásticos.
Onde é que está o tão aclamado mérito de "Rubros: Vestido - Bandeira - Batom"? Não, não é um fiasco completo, mas está longe de ser "um estouro da crítica nacional".
Os diálogos são superficiais e estereotipados, as atrizes deixam a desejar e o feminismo subiu no telhado. O gancho para uma discussão "politicamente profunda" se perde entre um contato ou outro com a Diretas Já, uma simpatizante do DA e uma frustrada que, supostamente, teria levado seus ideais às últimas consequências e, bom, o resultado foi catastrófico. Mas, antes de despejar todos os tijolos da casa, vamos avaliá-la ainda de pé.
Para quem não viu, trata-se de duas amigas na casa dos quarenta, que tiveram uma vida adolescente próxima às turbulências políticas dos anos 80 e início dos 90. Tereza está largada em casa, desgrenhada e desiludida com a vida. E Helô, que vem visitá-la todos os dias à noite e aos finais-de-semana, tenta tirar a amiga da amargura.
Até a metade da peça, você fica esperando o tal debate feminista, o tal engajamento político, o tal aprofundamento das questões cotidianas e, quando você acha que vai, não vai. Mas você ainda ri de alguns diálogos e tem esperança de que as contradições apresentadas se aprofundem, tais como em qualquer boa peça. Afinal, quem tem pressa é comercial.
No entanto, meus caros, a partir da metade da peça, a minha -- e a nossa -- desilusão começa a se montar. E ela tem um nome: Pedro Henrique, o filho morto da desiludida. Em um determinado momento, o roteiro dá uma guinada e, de repente, toda a amargura de Tereza gira em torno da morte deste filho.
Da expectativa de uma grande idéia (pois, ora vejam, eu também a-do-rei a sinopse da peça) surge uma saída novelesca. As reflexões perdem-se num emaranhado de tempo entre o fiasco do relacionamento e o fim trágico do filho de 12 anos. E isto definitivamente desmontou todos os tijolinhos criados na primeira metade até o tombamento da casa toda.

Feminismo: estereótipos
É clara a intenção da autora de, ao longo da peça, transparecer um pouco de Helô em Tereza e vice-versa. A construção é boa, mas se até as casas do Sérgio Naya caíram, não é?

Podemos caracterizar, de forma geral, que Helô foi a mulher simpatizante do movimento, não muito engajada (como ela mesma se define), gosta de se arrumar (faz o tipo feminina), era mais recatada sexualmente (não liberava geral), precavida (conseguiu se "dar bem" financeiramente) e utiliza um certo tipo de alienação para, digamos, ser feliz. Ou seja, ela é o estereótipo do meio-termo, da água de batata, do banho-maria como queiram chamar.

Engajamento político não estava relacionado, diretamente, a uma tomada de consciência de classe (aliás você nem sequer ouve falar em classe trabalhadora em momento algum), senão a um movimento de inércia política levada pelo rumo dos acontecimentos veiculados pela mídia na época. Se ela não passa por isto, falar que foi uma consciência feminista então passa longe.
A reafirmação da ideologia "ser feminina" é bem explícita. Não que passar maquiagem seja um problema de princípio, mas fica claro na peça que é um exercício de alienação da sua própria condição. Este fenômeno ligado ao fato de que ela era "recatada sexualmente" e, no fim, acabou fisgando o namorado da amiga reforça a imagem conservadora que a mulher deve adotar para não acabar uma solteirona frustrada. Bom, sem contar a ideologia mais perigosa: mulher só é feliz alienada. É óbvio que as idéias não são claras desta forma, mas basta uma perícia cuidadosa dos destroços do tombamento para detectar estes problemas estruturais.

Quanto à Tereza, os problemas se aprofundam. Por ela ser, em tese, o contraponto em relação à Helô, a sua imagem de fiasco, fracasso, desilusão e fragilidade reflete, indiretamente, qual seria a saída para a mulher que optasse por uma alternativa diferente à vida de Helô, qual seja: o fundo do poço. Num primeiro momento, como já disse, a expectativa é grande. Pois Tereza, apesar de seu estereótipo, critica em pontos certos atuações e comportamentos -- tanto políticos quanto culturais -- do mundo feminino. E mais, ela foi a que optou por ir a fundo na disputa pelo espaço da política e da opinião pública. Em tempo, um espaço dominado pelo mundo masculino. Ela filiou-se, militou, engajou-se, levantou bandeira e comprometeu-se politicamente. Qual foi o resultado? A tragédia da realização materna mascarada pelo drama em torno do filho morto na porta da escola porque ela esqueceu-se de ir buscá-lo. Com o agravante de que ela perdeu a guarda do filho para o pai, o homem. Ou seja: "Veja bem, mulher, este negócio de engajar-se demais na política... isto pode ser uma tragédia".
E, então, a partir desta guinada no roteiro, toda sua frustração deixa de ser uma crítica qualificada senão uma dor pela maternidade mal realizada.

Estas caracterizações não seriam um problema em si, se o movimento fosse dialético e as contradições aprofundadas. No entanto, a peça gira em torno do reforço destas ideologias envolvidas por uma falsa imagem de crises pessoais, de rompimentos e diálogos bruscos que atingem somente a superficialidade acabando por ser uma delas.

Política
É fato que há um certo desentendimento sobre o grau de organização do movimento da classe trabalhadora atualmente. Mas, a princípio, também não seria um problema tão grave. Pois boa parte das pessoas que tramitam naquele universo de amargura pequeno-burguesa também não o sabem.
O problema é a falta de compreensão mais histórica do movimento, qual seu papel naquele período, no que se transformou hoje e quais foram as alternativas (ou não) de quem disputou o espaço político à esquerda na época -- e continua ou não até hoje.
O máximo que chega é uma militância mais ou menos próximas ao PT, uma crítica leve ao governo Lula e uma passadinha pelos argumentos da meia-dúzia que voltaram para casa. Afinal, se Tereza tivesse sido tão engajada mesmo e fosse ganha para o discurso de transformação à moda PT, ela estaria am algum cargo público de baixo escalão de qualquer nível (federal, estadual ou municipal).
Por outro lado, se ela fosse a fundo no seu comprometimento, teria encontrado mais espaço para militar e manter a luta pela revolução social. E isto não se resume a "algumas frentes sociais e o MST".
No entanto, o alvo e o tempo são corretos. Refletir sobre as contradições da atuação do PT, as alternativas de esquerda, os movimentos políticos atuais são sempre boas referências, mas não passa de uma frase ou outra, um diálogo ou outro perdido no drama que desemboca em novela.

Mulher-ao-mar!
A casa tombou, mas o terreno é fértil.
A sensação não é de "inferno, perdi meu dinheiro" e, sim, "puxa vida, uma casa tão bonita, um terreno tão bom, porque será que tombou?". Se perdemos nosso tempo vasculhando os escombros é porque a casa vale a pena. As moradoras sobreviveram. Ainda dá tempo de construir uma nova, no mesmo lugar, talvez com uma estrutura melhor para as mesmas pessoas habitarem.
E lá vou eu de capacete amarelo com uma luz no centro, acenando delicadamente.
Até a próxima.