terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A implosão de "As eruditas"

A crítica ao pedantismo é indicustivelmente qualificada.
Uma casa tão bem construída que técnicos diriam ser à prova de terremotos, vendavais, furacões e maremotos sem passar por um arrãozinho na maçaneta. Um terreno seguro, digno das obras de Molière, e, por ser uma delas, faz jus à sua fama.
Diálogos bem construídos, ironia articulada, tradução de Millôr impecável, ou seja, passaria incólume de falhas na construção por qualquer meia dúzia de intelectuais com algum neurônio funcionando.
No entanto, sob uma perspectiva feminista -- que não é mais nem menos do que qualquer outro campo de crítica -- a obra apresenta rachaduras imperdoáveis.
A criação do estereótipo das eruditas pedantes se, por um lado, traça um cenário risível das bizarrices acadêmicas; por outro, reforça a imagem do feminino na sociedade: incapacidade e/ou inconsistência para elevação do espírito.

Trata-se de três mulheres deslumbradas com a filosofia: mãe (Filomena), filha (Armanda) e cunhada (Belisa). As três lideradas pelo homem detentor da sabedoria (Tremembó) que, mais pra frente, será desmascarado como charlatão. O livro deixa claro e enfatiza a incapacidade das mulheres em notar que Tremembó não passa de um picareta verborrágico.
O enredo gira em torno do impasse do casamento de Henriqueta (filha "não-filósofa" de Filomena e também irmã de Armanda) apaixonada por Cristóvão, porém prometida ao sabichão Tremembó pela mãe.
A abertura do livro é sintomática: Armanda questiona a irmã, Henriqueta, sobre a razão e a institucionalidade do casamento. O que parece ser progressivo num primeiro momento, logo depois descamba. Armanda, ao longo da história, demonstra que ainda nutre algo por Cristóvão, gosta de esnobá-lo e fantasia que ele ainda a corteja.
Todos os discursos pró elevação da consciência feminina, sob qualquer ângulo, começam a ser desmontados e, consequentemente, desqualificados. Tanto de Filomena, quanto de Armanda e Belisa.
Como já disse, o combate ao pedantismo é ótimo. No entanto, o preço é caro. A reafirmação da ideologia do lugar da mulher na sociedade que, primeiramente, parece fazer parte da sátira; no fim, acaba sendo a moral da história.
Os desfechos começam a se dar quando os homens articulam uma farsa para desmascarar Tremembó e mostrar às filósofas a verdade. Ou seja, tanto para um lado quanto para o outro, as mulheres necessitaram efetivamente da presença masculina para mostrar-lhes o caminho da verdade. Não há independência de espírito em nenhuma delas. Pelo contrário: é como se, sem eles, elas se pusessem a bater cabeça incessantemente.
E, por fim, Henriqueta, aquela que almeja apenas um casamento, um filho, um marido e uma vida água-de-batata, tem um final feliz.
Crisaldo, que durante todo o livro foi "dominado" pelas posições de Filomena, acaba dando o veredito final.
Este é o dono desta fala:
"(A Belisa) Falo mais a você, minha adorada irmãzinha. Fica toda irritada com o menor solecismo sem reparar que o seu comportamento é todo um barbarismo.
Essa quantidade de livros em que vive mergulhada é uma montanha de lixo que não vale nada.
Isto é: com exceção daquele Plutarco com capa de lona que eu uso pra calçar o banco da poltrona.
Você devia queimar toda essa porcaria, toda essa falsidade
e deixar a ciência com os sábios de verdade.
Quebrar ou botar fora a luneta imensa que está lá no sótão e as outras bugigangas com que vê não sei o quê.
Esquecer um pouco o que se faz na lua
e preocupar-se mais com a arrumação da casa, obrigação sua.
Não é nada direito que uma mulher estude mil coisas irreais
e descuide, na prática, das coisas mais banais.
Orientar os filhos no caminho da vida, dirigir e comandar a criadagem, manter a casa limpa e arejada, gastar o dinheiro com economia, taí uma filosofia.
Nossos pais, nesse ponto, sabiam o que diziam quando afirmavam que uma mulher já não é nada tola se distingue uma réstia de alhos de uma de cebolas, um par de calças de um par de ceroulas.
As mulheres antigas não liam,
mas viviam,
consideravam cuidar do lar um ato de cultura
e, em vez de aprender a besteira da literatura,
que a imaginação só entulha,
manejavam o dedal, a linha e a agulha[...]"

As três mulheres que poderiam ser progressivas, em alguma instância (à exceção do esnobismo acadêmico), são desmoralizadas. E, Martina, a cozinheira, dá a moral da história:

"Se eu tinha um marido, eu acho
que eu queria ele bem macho.
Alguém prefere mole o marido?
Em qualquer sentido?
E se eu agisse mal
eu acho que ele devia me sentar o pau.
O meu marido.
Em qualquer sentido."

O resultado dos ingredientes subjetivos encrustrados nesta obra que, obviamente, fazem parte do contexto mais geral de construção do coletivo, as mulheres sentem na carne, nas vísceras e no poço sem fundo da alma.

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